Tolerância à seca na cana-de-açúcar: desafio que está sendo driblado
As mudanças climáticas influenciam diretamente na disponibilidade de água. Tanto pelos longos períodos sem chuva, quanto pelo aumento da temperatura, resultando na maior evaporação da água disponível. Como a agricultura é totalmente dependente do clima e da água, é preciso buscar alternativas para manejar essas dificuldades.
A falta de água nos cultivos agrícolas causa reduções severas na produtividade e afeta o comportamento fisiológico das plantas. Na cultura da cana-de-açúcar a necessidade de água muda de acordo com a variedade e a fase do desenvolvimento do canavial.
A restrição de água resulta na diminuição da taxa de crescimento, abertura e fechamento de estômatos, taxa de transpiração, tamanho e número de brotações das plantas.
Todas as alterações fazem com que a cana-de-açúcar, que é um dos mais importantes cultivos do país, não consiga atingir todo o seu potencial de produção. Um dos motivos é que a fotossíntese da cana-de-açúcar pode diminuir em até 35%.
VOCÊ SABIA? A fotossíntese é o processo que as plantas fazem para obter seu alimento (energia). Além disso, é pela fotossíntese que o gás carbônico (CO2) é retirado do ar, retornando oxigênio (O2) para o meio ambiente. O processo de fotossíntese é fundamental para a sobrevivência das plantas e da vida no planeta.
Importância da cana-de-açúcar para o Brasil
A cana-de-açúcar é considerada uma das maiores riquezas da agricultura brasileira. A sua produção tem grandes impactos na economia, sociedade e uso dos recursos naturais.
A estimativa de produção da safra 2019/2020 é de 642,7 milhões de toneladas de cana. Todo esse montante poderá ser utilizado para produzir 30,14 milhões de toneladas de açúcar e 33,83 bilhões de litros de etanol, um biocombustível menos poluente.
Além disso, a biomassa da cana-de-açúcar (bagaço, por exemplo), pode gerar bioeletricidade. Em 2018 essa produção foi a quarta fonte de energia mais importante no país, chegando a gerar 21,5 TWh (Terawatt-hora). Toda essa eletricidade representa, segundo a União da Indústria de Cana-de-Açúcar (UNICA):
- O abastecimento de energia elétrica a 11,4 milhões de residências ao longo do ano
- A redução da emissão de 6,4 milhões de toneladas CO2 (CO2 total)
- Economia de 15% da energia armazenada total nos reservatórios das hidrelétricas do submercado sudeste/centro-oeste
Esse tipo de geração de energia por biomassa é fundamental para a redução de emissões dos gases de efeito estufa. Para atingir esse objetivo, o Brasil tem como meta chegar ao consumo de 50 bilhões de litros de etanol em 2030.
No entanto, para atingir essa meta, é preciso que os cultivos de cana-de-açúcar sejam plenamente irrigados, adubados com macro e micronutrientes e tenham controle efetivo de pragas e doenças. No Brasil, o maior desafio é a irrigação já que mais de 90% dos nossos canaviais só recebem água quando chove.
Cana-de-açúcar: mais de 500 anos sendo uma importante cultura para a economia brasileira
Ciência e tecnologia para driblar o desafio hídrico da cana-de-açúcar
Diante do cenário de mudanças climáticas e dos desafios de irrigação da cana-de-açúcar, os cientistas estão desenvolvendo diferentes formas de entregar variedades de cana tolerantes a períodos de seca.
Nas plantas cultivadas, os mecanismos de tolerância à escassez de água não são muito simples de serem ativados pois, normalmente envolvem a combinação de sistemas que permitem que a planta suporte a falta de água e ainda, mantenha a sua produtividade.
Melhoramento genético e mecanismos de tolerância à seca
Mecanismos de tolerância à seca reúnem estratégias utilizadas pelas plantas para conseguirem viver em um ambiente de estresse hídrico. Para isso, lançam mão de adaptações genéticas, fisiológicos e de morfologia.
Essas estratégias são diferentes, dependendo da espécie de planta, do seu ciclo de desenvolvimento, e até mesmo da variedade cultivada. Em muitos casos esses mecanismos são naturais. Em outros são selecionados pelo melhoramento genético.
Retardo da desidratação
Um exemplo de mecanismo fisiológico é o retardo da desidratação, ou seja, a planta demora mais para perder a água que está presente nela. Trata-se de uma estratégia fisiológica para controlar o estoque de água e, consiste na manutenção do turgor e volume celular. O mecanismo de retardo envolve a redução da abertura e fechamento dos estômatos, provocando diminuição da transpiração da planta.
- Turgor: é o estado natural da célula com água e outras substâncias. Plantas com células mais túrgidas sofrem menos com a falta de água por um período.
- Estômatos: são estruturas que estão principalmente nas folhas das plantas. Os estômatos são responsáveis pela troca gasosa e entrada e saída de vapor de água nas plantas.
Aproveitamento das raízes
Além do retardo, outro mecanismo utilizado pelas plantas é o melhor aproveitamento das raízes. As plantas podem aumentar a profundidade das raízes, além de aumentar o volume. Com maior número de raízes e mais espalhadas, encontrar água no solo passa a ser uma tarefa mais fácil.
Características morfológicas nas plantas são selecionadas com a finalidade de se obter uma melhor captação de água pelo vegetal. O aumento do número de raízes e o seu maior volume podem auxiliar no melhor aproveitamento da água pelo metabolismo vegetal.
O aprofundamento do sistema radicular é uma das estratégias da morfologia vegetal à seca, sendo essencial para o bom desempenho de cultivares de cana-de-açúcar em ambientes com baixa disponibilidade de água.
O desenvolvimento de variedades com características desejáveis e necessárias é longo e requer muito investimento em pesquisa. Esse processo é conhecido como melhoramento genético.
Melhoramento genético vegetal
É um processo de introdução e seleção de características desejáveis para uma determinada espécie de planta. As características podem ser resistência a pragas e doenças, aumento de produtividade e tolerância a estresses abióticos, por exemplo.
Exemplo de uma variedade de cana-de-açúcar tolerante à seca, produzida por meio do melhoramento genético, é o da variedade RB0442. Essa variedade foi desenvolvida pela Universidade Federal do Alagoas (UFAL), que é membro da Rede Interuniversitária para o Desenvolvimento do Setor Sucroenergético (RIDESA).
Essa variedade teve seus primeiros cruzamentos em 2004 e só em 2010 os primeiros testes de campo em diferentes regiões foram iniciados. Em 2019 a variedade começou a ser multiplicada para então ser testada e registrada para a comercialização. A RB0442 possui características de alto rendimento agroindustrial, tolerância à seca e resistência para algumas doenças. É recomendada para o plantio em extensas partes da região nordeste do Brasil.
Biotecnologia e avanços no melhoramento
Além do melhoramento clássico, a técnicas da biotecnologia tem contribuído para disponibilizar variedades de cana-de-açúcar cada vez mais adaptadas aos desafios da produção agrícola sustentável.
Em 2017, o Brasil aprovou a primeira cana-de-açúcar transgênica do mundo contendo um gene Bt (Bacillus thuringiensis) para controlar Diateaea saccharalis, a broca-da-cana. A broca causa sérios prejuízos aos canaviais e é de difícil controle.
Logo depois vieram mais duas variedades transgênicas, nos anos de 2018 e 2019. Ambas possuem também a resistência a insetos. O que muda entre as três variedades são os genes que foram utilizados para a transformação genética, e onde esses genes atuam na planta, conforme pode-se observar abaixo.
A característica de resistência a insetos diminui os custos com pulverização de inseticidas, o volume de inseticidas empregados na lavoura, economiza água e combustível. Com isso, a biotecnologia na cana-de-açúcar já está agregando maior sustentabilidade no modo de produção.
Além disso, a cana-de-açúcar geneticamente modificada pode resultar em maior produtividade para o agricultor e em uma participação ainda maior do Brasil no mercado global dessa commodity.
Commodity: Vem do inglês e significa mercadoria (em tradução livre). São produtos que funcionam como matéria prima e que podem ser estocados sem perder a qualidade. Seu preço é definido pelo mercado mundial, em função da oferta e demanda.
A combinação de variedades mais tolerantes à escassez de água associadas às características de resistência a insetos abrirá um novo capítulo na história da cana-de-açúcar do Brasil. Viveremos o momento em que é possível introduzir a cultura em regiões adversas e atender aos objetivos de desenvolvimento sustentável (ODS) do ponto de vista econômico e ambiental.
Desmistificando a cana transgênica
Principais fontes:
Agência Nacional de Águas (Brasil). Levantamento da Cana-de-açúcar irrigada e Fertirrigada no Brasil. 2. ed. Brasília, 2019.
Diniz, C. A. et al. RB0442 – drought tolerant sugarcane cultivar. Crop Breeding and Applied Biotechnology, 2019.