Mulheres nas ciências agrícolas
A produção agrícola é marcada pelo desenvolvimento de técnicas e ferramentas derivadas de descobertas de diversas áreas do conhecimento. No entanto, quando falamos de agricultura temos uma tendência a pensar na figura masculina, liderando as atividades. Mas, é essencial dizer que estamos equivocados com esse pensamento. A agricultura moderna é resultado de grandes contribuições das mulheres nas ciências.
Especialmente no Brasil, observamos um consistente crescimento na participação das mulheres na agricultura. Enquanto o número de homens no campo foi reduzido em 11,6%, o número de mulheres aumentou em 8,3 % em 2018. Um importante aspecto deste aumento é que ele se concentra em postos de trabalho que exigem maior qualificação, e são ocupados por mulheres que possuem maior status educacional, como cursos superiores.
No desenvolvimento da inovação e tecnologia, a qualificação é essencial. O resultado disso é que muitos avanços na agricultura, nas últimas décadas, foram conduzidos pelas mulheres, inclusive naquelas descobertas feitas em áreas não diretamente ligadas às ciências agrícolas.
Mulheres nas ciências: grandes cientistas sem o devido reconhecimento no passado
As ciências agrárias reúnem aplicações de diversos conhecimentos: botânica, entomologia, geologia e genética são apenas alguns exemplos. Em todas estas áreas tivemos grandes contribuições das mulheres. O que devemos lamentar e lutar diariamente contra foi a discriminação do passado. Vergonhosamente, o patriarcado não deu a notoriedade merecida às cientistas do passado.
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O caso da química e bióloga norte-americana Mary Engle Pennington (1872-1952) é emblemático. Apesar de ter estudado em uma universidade, não pode receber seu diploma por ser mulher. Saiu de seus estudos apenas com um “certificado de proficiência”, mas obteve o título de PhD, com apenas 22 anos. Seu trabalho, especialmente com produtores de leite a fez ser a primeira mulher a chefiar um laboratório na agência regulatória FDA (Food and Drug Administration). Ela definiu padrões para o processamento de carnes e prevenção de contaminações nos alimentos, sendo pioneira no estudo dos sistemas de refrigeração.
Também à frente de seu tempo estava a empresária rural Harriet Williams Rusell Strong (1844-1926). Após ficar viúva, precisou tomar conta das terras de sua família, que sofriam com a estiagem. Após a perda de sucessivas colheitas, mudou o manejo de culturas. Suas técnicas inovadoras na irrigação foram amplamente utilizadas na época, aumentando o potencial da agricultura no interior dos EUA.
Harriet também era ativista, sufragista, e uma das raras figuras femininas de sua época a estar no hall da fama de inventores de seu país.
Na biotecnologia, finalmente, o merecido reconhecimento chegou
Avanços em outras áreas também resultam em avanços tecnológicos que impulsionaram a agricultura. O trabalho da biofísica Rosalind Franklin é um exemplo desses. Ela foi uma das responsáveis pela descoberta da estrutura do DNA.
No entanto, por ser mulher, não obteve em vida, reconhecimento sobre seus estudos. Atualmente, sua participação é vista como essencial a descobertas realizadas nos primórdios das pesquisas com DNA.
Finalmente, as cientistas Emmanuelle Charpentier e Jennifer Doudna foram as primeiras mulheres a dividir conjuntamente a mais alta honraria da ciência. Chegaram a tal patamar pelo desenvolvimento da ferramenta de edição gênica baseada no sistema CRISPR.
Histórico e inovação do melhoramento genético plantas
A descoberta premiada em 2020 já tem efeitos significativos e quase imediatos nas ciências agrárias. Além disso, o primeiro trabalho que mostrou o uso da técnica de CRISPR no melhoramento genético de plantas foi liderado por outra cientista: Caixia Gao.
Em seu trabalho, ela mostra como editou os genomas de trigo e arroz, duas plantas que fazem parte da base alimentar de grande parte do planeta. A simplicidade e eficiência dessa tecnologia tornou mais rápido obter plantas geneticamente modificadas, muitas das quais já estão atualmente no mercado.
Mulheres nas ciências: do campo para os laboratórios
Em outros casos, a pesquisa de mulheres no campo pode influenciar outras áreas da ciência. Por exemplo, a geneticista Barbara McClintock (1902-1992) descobriu elementos genéticos móveis ao estudar cruzamentos de milho.
A ideia de que o material genético não era estático e imutável foi uma mudança de paradigma para a época, impactando múltiplas áreas do conhecimento. Por ser mulher, não pode ocupar uma posição nas Universidades em que desenvolveu grande parte de seus estudos. Somente anos depois se estabeleceu em Cold Spring Harbour, e após 35 anos de trabalho recebeu um prêmio Nobel pela importante contribuição na descoberta da transposição de genes.
A entomologista alemã María Sibylla Merian (1614-1717) também provocou mudanças de paradigma. Seu trabalho – a metamorfose de insetos – foi pioneiro ao introduzir desenhos detalhados e cientificamente acurados. A associação entre arte e ciência é considerada pioneira, e abriu caminho para que outros naturalistas também fizessem uso dessas técnicas em seus trabalhos.
A desigualdade de gêneros só promove perdas
Não por acaso, as primeiras mulheres a se destacarem na pesquisa são dos Estados Unidos ou da Europa. Enquanto na América Latina e África, as oportunidades para as mulheres iniciaram mais tardiamente ainda.
Restrições mais intensas justificam um triste cenário que precisa ser revertido o mais rapidamente possível. Motivo pelo qual, a ONU (Organização das Nações Unidas) criou o dia internacional das mulheres e meninas na ciência.
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As barreiras eram maiores no acesso à educação, fruto de raízes patriarcais que cerceavam o direito das mulheres. É emblemático o caso de Ynes Mexia (1870-1938).
Mexia, embora nascida nos Estados Unidos, era mexicana e passou grande parte de sua vida neste país. Somente ao regressar aos EUA, pode prosseguir com seus estudos, quando já tinha mais de 50 anos.
Em seu trabalho, fez expedições de estudos botânicos no Brasil, Peru, Chile, Equador, Argentina e EUA. Coletou e catalogou mais de 140 mil amostras de plantas, descobrindo pela primeira vez mais de 500 espécies. Sua coleção de plantas é estudada até hoje, e mais de 50 espécies levam seu nome como uma forma de homenagem.
Na atualidade é mais comum encontrarmos mulheres latinas envolvidas com pesquisas direcionadas à agricultura.
A química e bióloga mexicana Evangelina Villegas (1924-2017) é um exemplo. Seu maior objetivo era obter plantas de milho melhoradas nutricionalmente. Ela desenvolveu uma variedade de milho contendo teor mais elevado de aminoácidos. Como resultado, crianças que recebiam este milho cresciam até 15% mais. Em 2015, Villegas e seu colega de estudo, Vasal receberam o World Food Prize pela descoberta.
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A melhorista Maria Isabel Andrade (1958-atual) só pode estudar graças ao incentivo de sua família. Com o apoio de fundações, teve seus estudos nos EUA financiados. Ao retornar, trabalhou no International Institute for Tropical Agriculture, em Moçambique. Em pouco tempo, lançou nove variedades de cultivares de batata-doce e mandioca resistentes à seca.
Alguns anos depois, o número de variedades de batata-doce já somava mais de 30. Dentre elas, várias com maior tolerância à seca, e mais ricas em pró-vitamina A. Mais de 120 mil famílias já se beneficiaram de seu trabalho.
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Apesar da presença feminina em 90% do trabalho de produção de alimentos na África, a representatividade não é mantida quando analisamos as carreiras científicas. Por isso, existem diversas iniciativas em andamento, incluindo a African Women in Agriculture Research and Development (AWARD).
Desde 2008 a AWARD oferta financiamentos que permitem a formação de mulheres nas ciências agrárias. Assim, elas podem ocupar cargos no alto escalão dos governos e organizações. O treinamento que recebem as qualifica para atuarem nas diversas áreas das ciências agrárias, como irrigação, ciências do solo, horticultura, ecologia dentre outras.
Cerca de 200 universidades estão envolvidas nesse programa. Atualmente outras ações similares à AWARD também oferecem apoios às mulheres, como a Fundação Bill e Melinda Gates e a Fundação Agropolis.
Mulheres nas ciências do Brasil
No Brasil, não temos dados nacionais consolidados sobre a presença de mulheres nas ciências agrárias. No estado de São Paulo, um dos que mais investem em pesquisa e desenvolvimento, atualmente 50% dos pesquisadores são mulheres. Elas atuam em linhas de pesquisa nas mais diversas áreas como agronomia, biologia, engenharia de alimentos e economia.
Ainda há espaço para que mais mulheres possam ser inseridas nas carreiras científicas. É necessário, porém, que os investimentos em sua formação sejam contínuos e que a diversidade seja estimulada nos ambientes de trabalho.
Um dos exemplos mais notórios de mulher pesquisadora nas ciências agrárias é o de Johanna Döbereiner. Nascida na antiga Tchecoslováquia, estudou agronomia em Munique, mudando-se para o Brasil logo depois.
Por aqui, revolucionou a agricultura com seus estudos sobre a fixação biológica do nitrogênio. Enquanto somente a adubação química com nitrogênio era usada nos EUA, Döbereiner fez o Brasil seguir outro rumo. Todo esse trabalho resultou em economia de 2 bilhões de dólares anuais somente na adubação química da soja. Essa otimização dos custos colocou a soja do Brasil no mercado internacional, com preços competitivos. Desde então, o Brasil mantém-se entre os maiores produtores de soja do mundo.
As mulheres que estão à frente da pesquisa nacional atuam também em muitas áreas. Recentemente, com a epidemia do coronavírus, duas delas foram projetadas nacionalmente: a médica Ester Sabino e a biomédica Jaqueline Goes de Jesus.
Ambas as cientistas lideraram o grupo que obteve o primeiro sequenciamento do novo coronavírus em território nacional. Na ocasião, foi notória a velocidade com que realizaram este feito. Isso foi possível pelo trabalho de longa data, que já vinha sendo realizado pela equipe de Sabino e outros pesquisadores associados.
Por um futuro inclusivo e com mais mulheres nas ciências
O trabalho das mulheres na pesquisa foi dificultado por muito tempo. Muitos prejuízos decorrem da histórica restrição de mulheres à educação. Apesar das mudanças ao longo das últimas décadas, ainda há uma sub-representação feminina em algumas áreas. Ciências como física, astronomia e engenharias ainda são majoritariamente masculinas. Lamentavelmente, a desigualdade no acesso de meninas aos estudos nos diferentes países do mundo, ainda é identificada.
Todo o tipo de discriminação é inaceitável em qualquer área de atuação. Esperamos que todo o ato de exclusão seja severamente punido. Afinal, não existe possibilidade de prosseguirmos como sociedade pactuando com erros do passado. Portanto, cabe a cada um de nós promover a diversidade e denunciar qualquer sinal de exclusão. Caso contrário, a humanidade seguirá se envergonhando de atos contra a vida.
Principais fontes:
Africa Renewal. Breaking the glass ceiling: Women agricultural scientists. Disponível em: https://www.un.org/africarenewal/magazine/special-edition-agriculture-2014/breaking-glass-ceiling-women-agricultural-scientists. Acesso em: 04/02/2021
Cepea. Participação de mulheres no agro cresce; 68% se mostram satisfeitas com o emprego. Disponível em: https://www.cepea.esalq.usp.br/br/releases/cepea-participacao-de-mulheres-no-agro-cresce-68-se-mostram-satisfeitas-com-o-emprego.aspx. Acesso em: 04/02/2021
EMBRAPA. Memória Embrapa. Disponível em: https://www.embrapa.br/memoria-embrapa/personagens/johanna-dobereiner. Acesso em: 04/02/2021.