Edição gênica sempre esteve presente na agricultura
A impressão que temos ao falar em edição gênica é de que estamos nos referindo a algo muito inovador e que nunca antes havia sido realizado. No entanto, a natureza vem editando genomas há milhares de anos e nossos ancestrais tem se beneficiado desse processo há pelo menos 10 mil anos.
O Genoma é toda a informação hereditária “escrita” no DNA de um organismo (RNA no caso de alguns vírus). Diariamente ocorrem alterações nas sequências de DNA, que em sua maioria são corrigidas pela própria célula. No entanto, algumas modificações podem ser passadas aos descendentes originando organismos geneticamente diferentes e que podem resultar em novas características. Quando isso ocorre, podemos dizer que houve uma mutação genética ou edição gênica.
Edição gênica do passado ao futuro
A edição gênica realizada pela natureza ocorria (e continua ocorrendo) por meio da seleção natural, ou seja, quando novas características permaneciam no ambiente. Esse processo permitiu que plantas com certas variantes genômicas sobrevivessem e também fossem incorporadas na dieta de povos antigos que acabavam selecionando as plantas com melhores características para alimentação.
Assim começou o processo de domesticação de plantas e que, inclusive, originou a maioria dos vegetais hoje cultivados. Um exemplo clássico é o milho moderno, bem diferente do seu ancestral selvagem teosinto.
Utilizando edição gênica realizada pela natureza
Sabe-se que algumas plantas de teosinto (ancestral do milho) apresentavam maior quantidade de grãos por espiga, essa característica era proporcionada por edições genéticas naturais. Ainda na pré-história o homem passou a ter consciência de que ao cruzar apenas indivíduos de teosinto com uma maior quantidade de grãos por espiga, resultaria na produção de “filhos” do teosinto com um número ainda maior de grãos.
Assim se descobriu como selecionar e multiplicar plantas com características importantes para a agricultura.
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As alterações no genoma de plantas são fundamentais para o aprimoramento das culturas. Enquanto nossos ancestrais tiveram que se contentar com edições genéticas que ocorriam naturalmente, os agricultores do século XX se beneficiaram de tecnologias capazes de induzir modificações no genoma de diferentes culturas vegetais.
Essa transição teve início quando se reconheceu a existência dos genes e a forma com que esses eram transmitidos entre as gerações. Tal conhecimento proporcionou grandes avanços na produção de alimentos no mundo.
Os genes, são fragmentos de DNA capazes de produzir uma proteína e que podem ser herdados. O genoma engloba todos os genes de um organismo.
No entanto, a busca por melhor rendimento das culturas se manteve, especialmente porque os desafios na produção de alimentos nunca deixaram de existir. Um exemplo clássico, seria o maior número de grãos produzidos por uma planta de arroz em uma mesma área. E com o avanço da ciência, podemos atingir esse objetivo de forma muito mais rápida.
Inclusive, a manipulação de vias metabólicas por meio da sinalização hormonal pode ajudar as culturas a tolerar diferentes estresses abióticos, como o calor, frio, intensidade de luz, concentrações de metais pesados entre outros. A identificação e manipulação de genes de resistência a patógenos, também ajudam a planta a se proteger de estresses bióticos sem que haja prejuízo no seu desenvolvimento e produção.
A evolução do melhoramento genético de plantas
Com o avanço na compreensão do funcionamento dos genes e na forma com que eles são transferidos aos seus descendentes, o melhoramento genético de plantas foi evoluindo. Ao mesmo tempo, fomos desenvolvendo ferramentas cada vez mais eficientes, acelerando o processo.
Em um primeiro momento, os pesquisadores desenvolveram e testaram reagentes, incluindo radiação e mutagênicos químicos e físicos, para induzir edições aleatórias no DNA. Chamamos esse processo de mutação induzida.
Esse conceito de criação de mutação foi estabelecido na década de 1940 e teve resultados muito bem sucedidos como: variedades de trigo com rendimentos aprimorados, tomates resistentes a diversas doenças e cultivares de algodão tolerantes ao calor.
Na década de 1970 os pesquisadores passaram a desenvolver e dominar técnicas que permitiam o sequenciamento, identificação e a manipulação de genes, abrindo novos horizontes para o melhoramento vegetal, entre eles a possibilidade de realizar a transformação genética.
Com essas ferramentas, mais modernas, foi possível realizar alterações no genoma de plantas não só através de mutações, mas também por meio da incorporação de genes inteiros, até mesmo genes de organismos distantes (transgenia) ou de espécies relacionadas (cisgenia). Esses ficaram conhecidos como Organismos Geneticamente Modificados (OGMs).
Dessa forma, podemos dizer que a edição genética e a transformação genética são estratégias diferentes no melhoramento vegetal. A primeira é responsável por alterar a sequência de um gene por meio de mutações nas sequências nucleotídicas e nesse caso não originam um OGM. Enquanto a segunda estratégia é utilizada para inserir genes inteiros de um organismo em outro, resultando assim num OGM.
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A modernização da edição genética
Por muitos anos, as técnicas utilizadas para realizar edição genética em plantas foram consideradas “imprecisas” e trabalhosas, pois induziam mutações aleatórias no genoma. Fato que exigia avaliação de milhares de plantas em busca de uma característica de interesse.
Portanto, havia uma necessidade de ferramentas para alterar com precisão as sequências de DNA no nível de uma única base nucleotídica. As primeiras técnicas começaram a ser elaboradas na década de 1980, quando Mario Capecchi estabeleceu a tecnologia de “direcionamento genético”, juntamente com a ideia de aproveitar as quebras na dupla fita de DNA.
O grande desafio era como gerar uma quebra na dupla fita de DNA em pontos específicos do genoma.
Essa tecnologia só foi possível, graças a descoberta de pequenas tesouras moleculares de alta precisão, capazes de literalmente cortar o DNA em pontos específicos, dentro da célula. Esses cortes quebram a dupla fita do DNA, que é rapidamente “consertada” por um sistema de reparo próprio da célula.
Tanto as quebras na dupla fita do DNA, como seus reparos, acontecem naturalmente nas células. No entanto, quando são combinadas as tesouras moleculares às sequências de nucleotídeos, capazes de reconhecer regiões do DNA a serem cortadas, é possível fazer correções no DNA. Dessa forma, podemos eliminar ou adicionar nucleotídeos, ou seja, realizar mutações em regiões específicas do genoma e não mais de forma aleatória.
Usando essas ferramentas, os pesquisadores passaram a desenvolver sistemas de proteínas programadas para se ligar e cortar sequências de DNA. Naturalmente, no local das quebras a célula pode realizar o reparo da fita de DNA de duas formas:
Juntando as extremidades da fita e “colando-as” novamente (recombinação não homóloga), nesse caso pode ocorrer adição ou deleção de nucleotídeos. A célula também pode concertar a dupla fita de DNA usando um molde de DNA para reescrever uma sequência de nucleotídeos no local em que ocorreu a quebra (recombinação homóloga), nesse caso é possível corrigir um gene ou inserir novos genes.
No caso de o pesquisador optar pelo reparo por recombinação homóloga, um gene inteiro pode ser inserido no genoma e nesse caso o resultado será um OGM.
Atualmente existem três técnicas diferentes para realizar de forma precisa a edição de genes, a primeira delas lança mão de proteínas conhecidas como dedo de zinco ou Zing Finger Nucleases (ZFNs), a segunda é por meio de proteínas efetoras do tipo ativador de transcrição ou Transcription activator-like effector nucleases (TALENs) e a última é o famoso sistema CRISPR/Cas (Clustered Regularly Interspaced Short Palindromic Repeats with cas protein).
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Os ZFNs e os TALENs foram desenvolvidas na década de 1990 e são baseados em proteínas que requerem engenharia de proteínas para cada sequência alvo. No entanto, o CRISPR/Cas, desenvolvido em meados da década de 2000, é um sistema guiado por RNA e pode ser facilmente projetado para se ligar a diferentes sequências.
Nucleases de dedo de zinco (ZFNs)
Esse sistema foi desenvolvido a partir de uma classe de proteínas conhecidas como “dedo de zinco”. Os pesquisadores desenvolveram uma cadeia de proteínas dedo de zinco unidas a um outro tipo de proteína capaz de cortar fragmentos de DNA, a FokI. Esse sistema pode então ser personalizado para reconhecer e cortar diferentes sequências, no entanto é bastante trabalhoso realizar a engenharia de proteínas.
Além disso, a FokI realiza o corte em apenas uma fita do DNA, por isso a engenharia para se utilizar as proteínas dedo de zinco é dobrada, uma vez que se deve montar uma ZFN para cada fita do DNA, só assim a dupla fita será cortada.
Nucleases efetoras do tipo ativador de transcrição (TALENs)
Esse sistema ao invés de utilizar proteínas dedo de zinco, utiliza outra classe de proteínas conhecidas como “efetores”. É possível dar especificidade a região de corte alterando apenas uma pequena região dessa proteína, sendo menos trabalhoso a personalização para diferentes regiões do DNA.
Nesse sistema, a FokI continua sendo utilizada para realizar o corte no DNA ou seja, também é necessário desenvolver um sistema para cada fita de DNA, para então realizar o corte da dupla fita.
A técnica CRISPR/Cas
O termo CRISPR, na tradução literal, significa “Conjunto de Repetições Palindrômicas Curtas Regularmente Espaçadas”. Perto dessas sequências de DNA está o gene que expressa uma proteína da família Cas. Esse sistema é natural de bactérias e baseado nele, foi possível desenvolver um mecanismo de edição gênica, em que se utiliza uma sequência-guia de RNA (Ácido Ribonucleico) para direcionar a proteína Cas ao local de corte.
Substituta da FokI, a proteína Cas é capaz de realizar um corte que quebra a dupla fita de DNA e não só em uma das fitas, evitando a necessidade de criar dois sistemas para um alvo. Além disso, O RNA guia é mais simples de ser produzido e entregue a uma célula do que as proteínas efetoras ou dedo de zinco.
Por isso, o CRISPR é considerado um sistema mais simples do que outras ferramentas de edição gênica e mais acessível para cientistas de empresas públicas e privadas em países desenvolvidos e em desenvolvimento.
Aplicação da edição gênica no melhoramento genético de plantas
Embora a edição gênica pareça algo relativamente novo, até as ferramentas mais modernas já têm sido utilizadas no melhoramento de plantas de uma ampla variedade de culturas. Essa estratégia visa melhorar o rendimento, a qualidade, o valor nutricional, a resistência a herbicidas e a tolerância aos estresses biótico e abiótico.
Um dos fatores que aceleram a aplicação de técnicas de edição gênica é a disponibilidade de cada vez mais genomas sequenciados. A partir deles é possível identificar com maior precisão genes alvos para a edição genética e assim dar início ao desenvolvimento de uma nova cultivar. Os resultados de pesquisas já mostram impactos importantes da edição gênica, que incluem:
- Inativação de genes que afetam negativamente o rendimento de plantas proporcionando melhoria em número, peso e tamanho de grãos em cultivares de arroz;
- Alterações nucleotídicas também foram responsáveis por inativar genes resultando em aumento do tamanho de frutos de tomate;
- Genes de suscetibilidade foram editados geneticamente a fim de gerar plantas resistentes a patógenos, apresentando resultados promissores em plantas de citros e trigo;
- Tolerância a estresses abióticos como seca, salinidade e altas temperaturas tem sido obtida por meio de edições genéticas em genes sinalizadores e reguladores de vias metabólicas. Bons resultados têm sido observados em plantas de milho, trigo e arroz;
- O silenciamento de genes responsáveis por produzir compostos de difícil digestão ou que podem fazer mal à saúde de algumas pessoas, como é o caso do glúten presente no trigo, já tem mostrado resultados promissores.
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A edição gênica já saiu dos laboratórios
É consenso de que os produtos editados geneticamente são seguros à saúde humana, animal e também ao meio ambiente. Por isso, esses produtos não demoraram a ser comercializados.
É o caso de um cogumelo que não escurece ao ser cortado, primeiro produto desenvolvido pela técnica CRISPR disponibilizado no mercado após análise do departamento de agricultura dos Estados Unidos (USDA na sigla em inglês) em 2016.
Seguindo esse mesmo caminho, empresas e universidades estão desenvolvendo produtos agrícolas geneticamente editados e submetendo-os à consulta no USDA. É o caso do milho ceroso, desenvolvido a partir da deleção de um gene por CRISPR. O produto foi liberado nos Estados Unidos. Em 2018, ele foi a primeira planta editada avaliada pela Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) no Brasil e recebeu parecer semelhante ao do USDA.
Regulamentação edição genética no mundo
Novas cultivares de plantas obtidas a partir de técnicas modernas de edição gênica, como por exemplo CRISPR, não apresentam nenhum resquício de DNA ou RNA adicionados durante seu desenvolvimento. Dessa forma, esses produtos se equiparam aos gerados por mutagênese e não devem ser considerados OGM.
Em suma, as ferramentas mais recentes de biologia molecular podem ser usadas com altíssima precisão, tendo genes específicos como alvo e não necessariamente envolvendo inserções no genoma da planta. O resultado são mudanças pontuais que não permitem distinguirmos a planta modificada de uma não modificada.
Nos Estados Unidos, desde 2012 plantas editadas com ZFNs não precisavam passar pelo mesmo processo de regulamentação que os OGMs. Sendo necessário enviar uma carta consulta ao USDA, que segue uma avaliação baseada no produto final e não no processo em como ele foi desenvolvido.
Em 2015 a Argentina determinou que plantas geneticamente modificadas por técnicas de edição genética que resultassem em plantas sem DNA ou RNA recombinante não deveriam ser considerados OGM.
No Brasil, as técnicas de edição genética, são mencionadas como TIMP (Técnicas Inovadoras de Melhoramento de Precisão) desde janeiro de 2018, denominação atribuída pela CTNBio e incluída na Resolução Normativa nº 16 (RN16).
A RN16 estabelece que empresas e instituições que estiverem desenvolvendo um produto ou processo por meio de TIMP submetam uma carta-consulta para que a CTNBio avalie se o produto deve seguir a regulamentação de OGM ou se poderá ser registrado como um produto de melhoramento convencional ou mutagênese.
Outros países têm seguido esse entendimento para avaliar os produtos desenvolvidos por meio de tecnologias modernas de edição gênica, conheça alguns desses países.
É apenas o começo da edição gênica
As novas tecnologias de edição de genoma são de grande importância para que os programas de melhoramento genético de plantas continuem a acelerar o desenvolvimento de novas cultivares. Só assim seremos capazes de enfrentar os desafios que estão por vir na produção de alimentos, entre eles o aquecimento global.
A edição genética como conhecemos hoje, é resultado de grandes avanços em técnicas de biologia molecular. Isso permite realizar modificações em poucos nucleotídeos de um ou mais genes. Ferramentas como o CRISPR, mais simples e de menor custo, permitirá que pesquisadores menores como startups também atuem como importantes players no mercado.
As possibilidades de aplicações dessa estratégia na produção de alimentos são inúmeras. Devemos aproveitar essa tecnologia para aumentar a produtividade das culturas, realizar o desenvolvimento social e garantir alimentação saudável a uma população em constante crescimento.
Principal fonte:
Sedeek, K. E. M.; Mahas, A.; Mahfouz, M. Plant Genome Engineering for Targeted Improvement of Crop Traits. Frontiers in Plant Science, 2019.